MACHAMBA – Gisele Mirabai

UMA TENSÃO QUE NUNCA NESSA VIDA SE ALIVIA

Vencedor do primeiro Prêmio Kindle de Literatura, o romance Machamba, de Gisele Mirabai, foi publicado em 2017 pela editora Nova Fronteira. Apesar de ter escrito seu primeiro romance, a autora mineira participou de oficinas de escrita criativa ministradas por Marcelino Freire, lugar de onde bons escritores saíram, ajudando a mapear a nova literatura brasileira.

            A protagonista do livro é Machamba, uma mulher ímpar. A narrativa constrói em sua errância. Do Brasil para a Inglaterra, de lá para as ruínas de antigas civilizações, como a Grécia, Turquia, Egito. Em Éfeso conhece a casa que teria pertencido à virgem Maria. Se essa última marcou a história da civilização ocidental, Machamba, em seu “ostracismo”, marca a ruptura de um modelo de mulher talvez cristalizada pela própria Maria.

            Em meios às ruínas, há uma reconstrução dos fragmentos que constroem o mosaico interessantíssimo que é Machamba. Ela tem um estilo próprio de falar, de fazer relações e conexões com o mundo. Fala pouco e age muito. Causa nos espíritos reações impactantes. Não há como não sair do estado de repouso ao ler Machamba. Machamba é quase uma terceira lei de Newton.

            No interior de Minas Gerais, Machamba é uma adolescente que já vê o mundo com outros olhos. Adora, por exemplo, ler sobre civilizações antigas e, quando adulta, acaba por conhecê-las. Mas Machamba também tem desejos e descobertas comuns às meninas da idade. Para não decepcionar os meninos, treina beijos com as amigas, do jeito que elas veem nas novelas.

            Em Londres, beija todas as bocas que lhe são oferecidas. Quase como uma dominatrix, Machamba causa tanto desejo quanto pavor nos homens. Mas em meio às orgias enquanto homens e mulheres gozam e guincham, Machamba quer apenas colher uma flor e sair de um ambiente onde o orgasmo é obrigação. Se a mulher, nos tempos passados, gozasse, era louca. Agora quem não goza tem problemas e “precisa se tratar”.

            Machamba, com todo esse seu “sex appeal”, prefere às vezes só tirar as botas e sentir a lama entre os dedos dos pés, ou então sentir as gotas finas de chuva em seus cabelos. Quer colher flores, mas não há flores na fria Londres, há somente em suas Minas Gerais, tão distantes em tempo e espaço. Se estava em meio à prostituição, era “para aliviar uma tensão que nunca nessa vida se alivia”.

            E nessa incapacidade de se aliviar (sem sentido sexual), Machamba parte ao antigo mundo para, além de ver a casa da virgem, bolinar os peitos das estátuas gregas, talvez masturbar um argentino, visitar o templo de Ártemis, pensar em Sócrates, ver o Monte Sinai, ouvir um homem dizer que pagou cinquenta euros por uma miniatura da Acrópole (não a revisitada). A vida tem seus passatempos.

            O estilo do livro de Mirabai é peculiar e em certos momentos lembra seu “mestre” Marcelino Freire. Frases curtas e poéticas que nos atingem em pitadas. E construção temporal é bem costurada entre inúmeras idas e vindas. Cruzamentos temporais, espaciais, identitários.

            O mundo, uma alegoria de um moedor de carnes e ossos, tritura a infância de Machamba e lhe dá o desejo permanente de estar em uma “boleia de caminhão”. Machamba, depois de acontecimentos marcantes em sua infância, torna-se outra pessoa, em uma fragmentação de difícil reconstrução. Uma pessoa tão peculiar e, de tão verossímil, pode ser reconhecível em parte de nós mesmos.

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  • TÍTULO: Machamba
  • AUTORA: Gisele Mirabai
  • EDITORA: Nova Fronteira
  • ANO: 2017
  • GÊNERO: Romance
  • PÁGINAS: 176

TRECHOS:

 Ela deixa em cima de uma dessas letras, a sua lata de coca-cola. Única coisa vermelha, única coisa que olha. E sobe a escada do palco. Ali no meio, ela emite uma vogal, para medir o alcance do antigo show. O eco retumba nas pedras. Então, bem no centro do palco, ela solta um grito grosso e preso no peito, um som gigantesco.

À noite, Cecília fazia plantão. Quando tudo ao redor se acalmava, vinha para o seu quarto e se deitava na cama com ela. Em forma de concha. Num estado em que um corpo e um chocolate eram a mesma coisa. Ela beijava Cecília porque o seu beijo era o melhor estímulo que havia. Mas tudo que existia se resumia somente ao agora. Por isso, quando recebeu alta do hospital, pegou seu passaporte e foi-se embora para Londres. Sem olhar para trás. Sozinha, sem Luís e nem ninguém. Ela chorou por Luís e agora fez Cecília chorar. Isso por causa do jeito de ser das coisas, a vida funcionando sempre assim, em séries de ação e reação.

Machamba por fim abriu a porta do apartamento. Deitou-se no sofá não seu, ligou a televisão não sua e ficou ali tremendo, debaixo de uma coberta que também nunca haveria de lhe pertencer. Deixando que o Moedor de Ossos triturasse todo o seu esqueleto numa massa informe e sem cor, com a certeza absoluta de que nada nesse mundo tinha segurança.

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