PONTOS DE FUGA – Milton Hatoum

Dizem que errar humano, mas persistir no erro é diabólico. Certa ou não, essa máxima parece que funcionou ou comigo ou com o autor do livro que resenho aqui hoje. Comigo porque insisti em ler a continuação de um livro que já não tinha gostado muito. Com o autor por talvez insistir em algo que está fora do seu caminho conhecido e que lhe trouxe tanta coisa boa. Coloco no campo do talvez porque uma leitura é quase sempre predominante no filtro da subjetividade. Por isso, compreenderei quaisquer comentários vindouros discordando da minha posição.

Milton Hatoum é um escritor que aprendi a admirar. Gentil – tive a oportunidade de encontrá-lo mais de uma vez na minha cidade -, inteligente e um grande conhecedor de literatura. Seus livros me conquistaram desde a primeira vez que li. Já perdi as contas de quantas vezes li Dois irmãos, tanto por prazer quanto por questões profissionais – lia todos os anos quando ensinava a obra no ensino médio, chegando a memorizar algumas passagens. As releituras de “Cinzas do norte” e “Órfãos do Eldorado” não foram tantas, mas aconteceram pela imersão que eu tinha nessas histórias, narrativas passadas em um lugar que é ao mesmo tempo tão famoso no Brasil quanto desconhecido por sulistas e sudestinos. O alto nível literário também vi em “Relatos de um certo oriente”, “A cidade ilhada” e “Um solitário à espreita”, embora não tenha havido releituras.

Fato é que Hatoum, aos meus olhos, é um dos principais escritores da literatura brasileira contemporânea. Coloco Luiz Ruffato e ele em uma prateleira quase inalcançável para outros mortais nacionais. Talvez por ter alcançado o olimpo em minha estante, o tombo tenha sido tão grande. O autor vá me desculpar, caso leia a resenha, por esse endeusamento e crítica – somos, às vezes, passionais com nossas leituras. É que meu horizonte de expectativa estava alto demais por conta de tudo o que ele tinha feito antes. E é por isso que para mim “Pontos de fuga” não só destoa do que Hatoum já escreveu, mas é um dos livros mais chatos que li nos últimos anos.

O romance faz parte de uma trilogia chamada “O lugar mais sombrio” e foi iniciada com “A noite da espera”, livro publicado em 2017 pela Companhia das Letras, mesma editora que publicou todos os seus livros. Se no primeiro livro da saga a sensação é de uma narrativa um tanto bamba, no segundo a sensação é de que a narração está completamente perdida e não sabe para onde ir.

Ao contrário das obras que consagraram o escritor, essa trilogia não se passa em Manaus, mas em Brasília e São Paulo. A narrativa tem com protagonista um grupo de estudantes da Universidade de Brasília durante o golpe militar de 1964 e os anos que sucederam esse acontecimento nefasto da história brasileira. Dentro desse grupo quem se destaca é Martim, um jovem traumatizado pela separação dos progenitores, fazendo com que ele vá morar com o pai e tome uma enorme distância da mãe, a quem procura partout. No fim do primeiro livro (atenção: spoilers), Martim, perseguido pela ditadura, foge de Brasília para se refugiar em São Paulo.

            Em “Pontos de fuga”, publicado em 2019, então, vemos Martim em São Paulo, tentando seguir a vida e se envolvendo com uma certa resistência que está mais perdida do que qualquer outra coisa. O protagonista, agora estudante de arquitetura na USP, mora em uma república de estudantes com quem ele vai conviver, se desentender, dar apoio e tentar sobreviver em uma ditadura cada vez mais controladora, punitiva e perigosa. O mote não é ruim, mas a execução sim.

O problema do livro não reside no fato de não aproveitar o espaço que o consagrou (ou as temáticas), e por onde ele anda com enorme tranquilidade, mas por mudar totalmente a chave de narração. A linha que costurou tão bem personagens, paisagens e ações não consegue fazer com que haja uma unidade. Tudo parece perdido, solto. A sensação em “Pontos de Fuga” é de uma fragmentação (quando bem executada é incrível) que está longe de montar um mosaico, mas sim de algo totalmente desconexo.

É difícil criar empatia com tantos personagens – a gente se confunde o livro todo para saber quem é quem. Alguns são intragáveis, mas faz parte ter personagens odiosos, isso não é um problema na literatura. Mas Martim é morno. Falta-lhe carisma, para o bem ou para o mal. Como Martim é chato e entediante, o livro é chato e entediante – às vezes dava graças a Deus quando ele sumia da narrativa para focar em outras pessoas. Só fui até o final porque respeito muito o escritor, senão teria parado bem antes da metade. Boa parte das duzentas e trinta e tantas páginas é torturante.

Acho que o fato de mostrar o panorama do ambiente político não é mal feito, tem suas qualidades. São vários olhares, inclusive, olhando para os mesmos pontos e interpretando os acontecimentos à sua maneira. As vozes, entretanto, não parecem individualizadas, mas uma cópia da outra. A chave de narração não parece mudar nunca, parece sempre o mesmo personagem falando.

Se o objetivo era mostrar uma geração cheia de dificuldades, jovens sendo impulsivos e um protagonista completamente sem rumo, então ele conseguiu. Há pouco no plano da ação. Os personagens parecem estagnados, perdidos. A própria narrativa parece não saber para onde ir. A gente tem a sensação de que está na mesma página por mais de uma hora. Não há sabor.

Claro que se compararmos esse livro a outras produções literárias contemporâneas, veremos muito mais qualidade nele do que em muitos livros que saem aos montes por inúmeras editoras por aqui, tanto grandes quanto pequenas e independentes. Mas Hatoum está acima disso há muito tempo. Destoar um pouco é compreensível, se tornar irreconhecível nem tanto.

Muito provavelmente lerei o terceiro livro da série, porque Hatoum merece sempre a nossa confiança. Mas, se o tom for esse, com certeza abandonarei o livro dessa vez. Ouvi dizer que Hatoum pararia sua carreira nessa trilogia. Caso seja verdade, espero que ele repense isso e possa buscar em si mesmo aquele esplendor presente em tantas belas histórias que ele outrora nos contou.

FICHA TÉCNICA

LIVRO: Pontos de fuga (Livro 2 da saga O lugar mais sombrio)

AUTOR: Milton Hatoum

EDITORA: Companhia das Letras

PÁGINAS: 312

ANO: 2019

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