A COR DO PRESENTE – Marcio Renato dos Santos

“WHEN I WAS A CHILD, I HAD A FEVER”

Talvez o ponto em comum que una os contos de A cor do presente, de Marcio Renato dos Santos, seja o estranhamento, aquele bom estranhamento de narrativas curtas e impactantes que nos deixam um eco e nos fazem levantar a cabeça da página e, para usar um termo contemporâneo, brisar. O livro de contos, publicado pela editora curitibana Tulipas Negras, foi lançado em 2019 e possui onze contos distribuídos em cento e dezoito páginas.

            A estranheza que nos faz refletir é sempre uma estranheza que elucida algum aspecto da realidade, quase uma fantasmagoria, uma caverna de Platão às avessas. A atenção precisa estar ligada, pois as coisas se dão nos detalhes em textos falsamente superficiais, que são densos e que contém pitadas de humor, de trágico e até mesmo de existencialidade.

            Dou destaque para o conto “Confortably numb”, mesmo título de uma canção do Pink Floyd que, diga-se de passagem, adoro. Trata-se da história de Luciano, um web designer que é músico amador que toca nas horas vagas. Logo no primeiro parágrafo do conto, Luciano, que caminhava pelo centro da cidade, é atingido por uma marquise que desaba.

            Luciano e o narrador parecem acreditar que o fato acontecido não foi um acidente: alguém armou aquilo para Luciano ou então algo que ele fez, como um efeito borboleta, acabou acarretando no desastre. A mente humana querendo procurar lógica em tudo quando o acaso, para citar mais um trecho musical, não protegeu enquanto ele andava distraído.

“Seria” é um conto que flerta com o onírico/pesadelo. Conta a história de Diego que sai para beber uma cerveja com Thais, filha do amigo Ernesto, e Frederico, namorado da jovem. Em uma cena na qual as personagens e o próprio espaço estão com níveis etílicos às tampas, há traição, crime e a fuga para uma casa misteriosa que dá abrigo ao protagonista.

            Também onírico é o enredo de “No corpo do sonho”, conto no qual os corpos das mulheres simplesmente desaparecem. Antônia, a detetive que é protagonista da história, acompanha os fatos pela imprensa. Assustada com tantos desaparecimentos, que agora começam a acontecer na sua frente, ela é jogada em um turbilhão que pode tirá-la da realidade.

            Como os bons textos, o conto dá margem a várias interpretações. Uma delas, talvez a mais evidente, é a de que se trata de uma alegoria sobre o desaparecimento das mulheres em sociedades desiguais. Se Elza Soares canta que a “carne mais barata do mercado é a carne negra”, Santos mostra que os desaparecimentos das mulheres, como diz a apresentadora do telejornal, são apenas fake News (embora Antônia veja, com seus próprios olhos, mulheres sendo arrebatadas para o nada).

Outro conto impactante, talvez o principal do livro, é aquele que dá nome à obra. Em “A cor do presente”, o personagem principal precisa se adequar às constantes mudanças na moda e nos costumes. Algumas vezes parece que ele é apenas levado por certa tendência. Em outros momentos, entretanto, a imposição vem de cima e o preço é caro para aqueles que não conseguem ou não sabem se adaptar.

            O conto é sintomático do momento atual. Consegue misturar elementos diferentes no mesmo contexto: a mão invisível do mercado que tudo escolhe e determina excluindo todos aqueles que não se adequam a ela, junto a um conluio da própria população com as autoridades para uma espécie de autocracia que dizima.

            Embora não sejam ruins, os contos seguintes não têm a mesma força dos anteriores. De qualquer forma se mantém em pé. Talvez os únicos que não funcionem totalmente sejam “Maldição” e “Eterna”, cujos diálogos não são verossímeis. Os outros todos colaboram para a construção desse universo de estranheza de Marcio Renato dos Santos constrói com competência.

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  • TÍTULO: A cor do presente
  • AUTOR: Marcio Renato dos Santos
  • GÊNERO: Contos
  • ANO: 2019
  • EDITORA: Tulipas Negras

TRECHOS:

Outra dúvida dele é a respeito de como circular. No tempo das bicicletas, autoproclamou-se cicloativista, foi fotografado na inauguração da praça Os Chatos Sobre Duas Rodas e até em pedaladas noturnas nudistas. Abandonou a bike quando chegou a temporada pedestre, que durou dois anos. Então, usar Uber tournou-se tendência e ele se rendeu ao aplicativo de transporte. Ano passado aconteceu o revival do taxi e Simão também aderiu ao modismo. Há pouco, viu coelhos e coelhas rastejando e seguindo de quatro, com pé e mãos no chão, e ficou com medo de que essas práticas se tornassem opções, senão obrigatórias, recomendadas para a movimentação na cidade.

Uma terceira mulher pula em frente a um carro forte e outras mulheres, todas de quarenta anos, repetem o gesto durante o período em que Antônia está nas ruas. Ela anda sem cansar e sem ter certeza do que vê. As mulheres que se jogam contra veículos em movimento não se ferem nem caem no asfalto, mas seus corpos somem.

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