TODO HOMEM É A RUÍNA DE UM HOMEM
Ocupar e ocupar-se. Essas são as veredas para as quais correm o novo romance de Julián Fuks, com um cordão umbilical ligado à sua Resistência, romance que lhe deu prêmios como Jabuti e Saramago. O título, visto assim, pode até parecer previsível, mas A ocupação está muito além da previsibilidade e lugar comum, a escrita de Fuks já nos mostrou isso outrora.
O protagonista Sebastián, também chamado de Julián, é um homem que vive questões complexas em vários âmbitos da sua vida, dividida entre o filho que está para nascer e o pai no hospital que pode vir a falecer. Nessa roupagem autoficcional não faltam elementos que já apareceram antes como a história da família que migrou da Argentina para o Brasil fugindo da mão pesada da ditadura e relação com a origem judaica.
A primeira relação com ocupação é a social. Um grupo de pessoas passa a ocupar o prédio de um antigo hotel. Tentado a escrever um livro sobre essas pessoas, o narrador passa a frequentar o local e ouvir as histórias dos moradores, refugiados dentro e fora de seus países. Brasileiros, haitianos, sírios, entre outros. Najati, seu amigo sírio, é o incentivador da escrita.
Nessa função de ouvir e captar relatos, há outro sentido do verbo ocupar, agora acrescido do pronome reflexivo, ocupar-se, já que o protagonista precisa dessa ocupação para “fugir” de um fato/situação que recém lhe aconteceu e que pode definir o futuro de seu casamento. Fato que só será revelado mais tarde e que se omite aqui para não atrapalhar o andamento natural da leitura do romance.
Ocupação também é pertencimento, lugares que são ocupados pelas pessoas que lhe são próximas. Estar em uma posição entre ser pai e talvez ficar órfão em breve, é ser descendente de pessoas mortas em Auschwitz, é estar no Brasil com uma história prévia na Argentina, é estar entre os ocupantes, ouvir suas histórias, mas não pertencer a eles.
Casmurro desconstruído, o narrador do romance ata as duas pontas da vida, o nascimento com a possível morte, mas mantendo o olhar de soslaio, desconfiado das coisas que vêm acontecendo, desconfiado até mesmo da própria escrita, manifestando-se nos trechos metaficcionais, adicionando uma ponta a mais na sua autoficção.
Ocupação é reconstrução. Se ocupar o ventre materno é uma maneira de renovação e reconstrução, ocupar os espaços deixados pelas feridas também é. Feridas do âmbito pessoal e coletivo, uma vez que o romance não se furta em mostrar um brasil contemporâneo mergulhado no obscurantismo, aproximando o livro de uma espécie de escrita de urgência.
A surpreendente troca de cartas entre o protagonista e Mia Couto é um fio de esperança na humanidade e na escrita, uma escrita de resistência ao que está acontecendo no mundo atual. Ocupar é resistir, resistir é ocupar, o que torna esse romance e o anterior ainda mais umbilicais.
A toada do romance lembra, e aqui é uma leitura minha e pela qual assumo toda a responsabilidade, os grandes momentos das letras de Renato Russo e outros grandes compositores que conseguem aliar o social e o individual no mesmo texto, falando de amor em várias instâncias, de justiça social e da condição humana. Por isso A ocupação é riquíssimo.
A escrita de Fuks é fluida e extremamente convidativa, fazendo com que a leitura se torne ágil e profícua. É uma resistência à máxima do protagonista de que todo homem é a ruína de homem, mostrando que todo ser humano o é na sua capacidade de humanização, na empatia e na ocupação do que nos é de direito.
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- TÍTULO: A ocupação
- AUTOR: Julián Fuks
- EDITORA: Companhia das Letras
- GÊNERO: Romance
- ANO: 2019
- PÁGINAS: 128
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TRECHOS:
Acho que só ali comecei a entender o que eu sentira nas geleiras, o medo cósmico, como definiu Bakhtin, o medo que nos assola quando pensamos estar diante do imensurável, do incognoscível. O medo em que se baseia quase toda religião, na forja de um Deus opressor e protetor a um só tempo. o medo de que se aproveita também quase todo fascismo, o medo de algo incerto, mítico, de um inimigo erguido e esculpido com esmero, da maneira mais convincente, o judeu, o imigrante, o socialista, o negro, a mulher, o homossexual, o militante, o excluído.
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Pode parecer, mas esse não é um comentário edificante, Najati fez questão de esclarecer. Esse raciocínio tem duas consequências um pouco inquietantes. Primeiro, que todo amor tem algo de incestuoso, será sempre um amor entre irmãos ou entre primos. Segundo, e talvez mais importante, a noção de que, se somos parte de uma mesma e imensa família, toda violência contra o outro é uma violência contra nós mesmos, fadada a destruir a um só tempo cada um de nós e a humanidade inteira.
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