A MORTE O METEORO – Joca Reiners Terron

CADA SEGUNDO QUE PASSA É UM MILAGRE QUE JAMAIS SE REPETE

A Amazônia está devastada, os chineses chegaram à marte, o Chile foi engolido pelo Oceano Pacífico. Eis o cenário de um futuro cheio de contrastes presente em A morte e o meteoro, novo livro de Joca Reiners Terron, lançado recentemente pela Todavia. Um cenário com alguns pontos facilmente reconhecíveis em nosso presente, sobretudo quando se trata da questão amazônica.

            Eis o mote inicial: por causa da devastação de nossa floresta, índios da etnia kaajapukugi pedem asilo no México. A etnia, que praticamente não havia tido contado com o homem branco anteriormente, é recebido pelos mazatecas e alojado na região de Oaxaca, no sul do país. É a primeira na história que um grupo indígena faz tal deslocamento como refugiados políticos, e a viagem é acompanhada de perto pela imprensa internacional.

            O narrador do romance, que conta com pouco mais de cento e dez páginas, é um funcionário público mexicano que acaba sendo responsável por acompanhar os últimos cinquenta remanescentes da tribo, cujos integrantes são apenas homens. Sem nenhuma mulher, e com a maioria esmagadora de homens velhos, os kaajapukugi são um povo que esperam a morte em breve.

            Tendo perdido os pais há pouquíssimo tempo, o tal funcionário é quem ajuda o sertanista brasileiro Boaventura, homem que conhece mais profundamente o povo que vai habitar novas terras. Porém, Boaventura morre misteriosamente pouco antes de embarcar com os kaajapukugi para o México. O misterioso mexicano se vê, de repente, em meio a grandes problemas.

            Em dois dos quatro capítulos, o narrador cede a voz ao falecido Boaventura. O mexicano recebe em seu celular uma mensagem do brasileiro horas antes desse último falecer. Na mensagem, um link para um longo vídeo no qual Boaventura vai contar seu passado ambíguo quando descobriu, interagiu e viveu em companhia dos kaajapukugi.

            Um dos primeiros pontos interessantes e visíveis do livro é a questão da diáspora, que não é novidade na história humana. Povos de todos os cantos do planeta se deslocam desde sempre por inúmeros motivos: esgotamento de recursos naturais, fome, pestes, guerras etc. Mas um povo inteiro transferido como exilado político não é algo comum, sobretudo por se tratarem de índios, tão apegados ao local e suas tradições.

            Só poderiam, entretanto, serem compreendidos por outro povo indígena, pois o compadecimento mundial ainda é guiado pelo olhar colonialista. “É tão triste, mas não venham morar aqui, por favor”, é o que diz, sem dizer, a maioria. “Venham, irmãos”, é o que diz a ação dos mazatecas.

            Falando em resquícios de colonização, o personagem Boaventura é um exemplo de como isso pode ser imperceptível e pode vir à tona quando menos se espera. Indianista, apaixonou-se pela história dos kaajapukugi, andou vários dias de barco pelo rio Purus, levou uma flechada no primeiro contato com o povo que preferia viver bem longe do contato humano. Não guardou ressentimentos, insistiu tanto que acabou encontrando novamente o povo e conhecendo suas tradições, ações e mistérios. Mas também cometeu inúmeros erros, o que pode ter causado a sua misteriosa morte.

            Essa obscuridade presente em Boaventura também está no narrador personagem. Fala pouco sobre sua família, mora em um enorme casarão de madeira que por si só já guarda uma certa estranheza, nunca tira férias, envolve-se uma tragédia com os kaajapukugi e é o ponto de contato entre passado e futuro.

            Terron consegue fazer um contraponto digno de comparação à 2001: uma odisseia no espaço (já resenhado aqui no blog). Se na obra clássica de Arthur C. Clarke, um monólito é o ponto a ligar ancestralidade e exploração do espaço, em A morte e o meteoro é uma vestimenta kaajapukugi a fazer uma ligação improvável entre povos indígenas e a colonização de marte.

            Ao ler o romance de Terron, é difícil não lembrar de Nove noites de Bernardo Carvalho (também resenhado aqui). Se na obra publicada em 2002, temos Buell Quain, que é obcecado pelos Krahô, e um narrador, jornalista, que se envolve nessa história, no livro em questão temos Boaventura que é obcecado pelos kaajapukugi e um narrador mexicano que se envolve na história.

            Entretanto, apesar da comparação com esses dois livros acima, o livro de Joca Terron se sustenta sozinho, não é cópia nem parece se inspirar em nenhum deles. O livro é muito bem articulado, com uma linguagem clara e situações impactantes com ótimas reviravoltas. Haja visto o final, um dos mais forte e imprevisíveis que li nos últimos tempos.

            O autor cria ainda a cosmogonia dos kaajapukugi, seus rituais, sacrifícios e personalidade. Melancólicos por natureza, esse povo que convive com insetos alucinógenos perde sua territorialidade. Mas não é necessário que a Amazônia seja devastada para que isso aconteça. Ao longo da história, fomos desterritorializando inúmeras tribos e isso vem acontecendo com uma enorme frequência e velocidade nos dias atuais. E o perigo se encontra real até mesmo para as tribos isolados do Amazonas.

            Essa é talvez a grande potencialidade do livro de Terron, unir passado, presente e futuro, em um tom obscuro que esclarece e assusta ao mesmo tempo.

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  • TÍTULO: A morte e o meteoro
  • AUTOR: Joca Reiners Terron
  • EDITORA: Todavia
  • ANO: 2019
  • GÊNERO: Novela/Romance
  • PÁGINAS: 116

TRECHOS:

O tukano, que ao longo da semana se manifestou somente sobre coisas pontuais, disse que aquela era a região onde os índios desconhecidos tinham sido avistados pelo garimpeiro. De sobreaviso, ele deixou ao alcance sua velha espingarda, e sua testa larga e simétrica, que lhe dava um ar de inequívoca inteligência, franziu de preocupação. Desligou o motor a quatrocentos metros da margem, e orientamos o barco com auxílio dos remos através da correnteza no sentido dos igarapés que afluíam, emaranhando-se em direção ao coração da selva. Próximos da margem, embicamos a proa no igarapé mais largo e vimos colunas de fumaça subindo das águas, as copas das árvores se fecharam sobre nossas cabeças e senti que penetrávamos o umbigo do planeta. Então senti a vibração, um golpe semelhante ao deslocamento de ar causado por um ventilador poderoso, algo que atingiu minha cara com tal força que metade do meu corpo caiu dentro d’água […] Apenas nesse momento senti dor e percebi que a flechada atravessou minha cara de um lado a outro.

Para Boaventura, o espanto não poderia ser maior, pois ele sabia que os primeiros kaajapukugi tinham sido exterminados por volta dos anos 20, na sequência de invasões do território kugi. Aqueles dois povos sobreviventes, portanto, cuja força se devia à união do gato selvagem com a capacidade regenerativa do lagarto, agora miscigenados em felino-réptil para enterrar suas diferenças, escolheram ser chamados pelo nome de irmãos aniquilados, metamorfoseando-se em kaajapukugi.

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