A VEGETARIANA – Han Kang

TODAS ESTÃO DE CABEÇA PARA BAIXO

            Um título que parece remeter a um livro panfletário pró-vegetarianismo, desses que tentam nos convencer, a todo custo, dos benefícios que se tem em abandonar o consumo de carne. As inscrições, na capa, em alfabeto iconográfico, remetendo possivelmente a uma língua do extremo-oriente, parecem reforçar a estranheza em relação ao livro. Na orelha, a descoberta: trata-se de um livro sul-coreano. Então uma pergunta ecoa nos confins da mente: o que pode haver de bom, afinal, na literatura sul-coreana?

            Provavelmente esse pode ser um mote para aguçar a curiosidade do leitor. Sobretudo porque, na própria capa, há a informação de que A vegetariana, de Han Kang, venceu o ManBooker International Prize em 2016. O romance que rendeu o prêmio à jovem escritora oriental foi publicado esse ano pela Todavia. O medo do panfleto se esvai à medida em que se percebe a grande qualidade literária do livro em questão.

            Apesar de ser mais comum do que anteriormente, a decisão pelo vegetarianismo ainda causa muitas reações negativas em nossa cultura, sobretudo em regiões como a minha, onde há uma tradição muito forte em relação à carne de boi e ao churrasco. Entretanto, a estranheza, juntada à incompreensão, parece ser mais forte ainda na Coreia do Sul – ao menos é a impressão que se tem ao ler o livro.

            É o que acontece com a personagem Yeonghye. Primeiramente seu marido, depois toda a sua família, sobretudo pai e mãe, não aceitam o fato da filha ter decidido não comer mais nada de origem animal. O marido, narrador da primeira parte, atribui a essa decisão a falência, petit à petit, de seu relacionamento. Embora nunca tivessem tido uma relação de intensa afetividade, o casamento passa a ir de mal a pior, com a esposa esquecendo de fazer as suas “obrigações” como mulher e dona de casa, o que causa a revolta do marido.

            Yeonghye tem sonhos bem estranhos que beiram a pesadelos. Isso traz um incômodo grande a sua vida, que se reduz a pouco mais do que vegetativa. Ela acredita que tem os sonhos porque come carne. Decide então, de uma só vez, livrar-se de toda a carne de sua geladeira. Como vai ficando fraca pelo baixo consumo de proteína, é forçada pelos pais, que moram no interior do país e vêm visitar as duas filhas, a comer carne novamente. Em uma das cenas, há violência explícita contra ela. Não aceitam o fato de ela ter parado de comer carne, alimento “tão natural” para os humanos.

            Mas Yeonghye já entrou em um turbilhão que a conduz por caminhos escuros de sua mente, levando-a à loucura, com toques sobrenaturais, no sentido mais largo do termo, como é possível ver no trecho: “Gritos e choros se sobrepõem e ficam encravados aqui. É por causa da carne. Comi carne demais. Todas essas vidas estão entaladas aqui. Tenho certeza. Sangue e carne foram digeridos e se espalham por todos os cantos do meu corpo; os resíduos foram colocados para fora, mas as vidas insistem em obstruir o plexo solar”.

            A estranha relação com o cunhado, a distância com a irmã, uma mancha de nascença em seu corpo acentuam a estranheza (sempre no sentido positivo, aquela estranheza que leva para fora do lugar comum) do ambiente, das relações e das situações nas quais as personagens são inseridas. Uma estranheza que potencializa tristeza e solidão, que são as sensações mais transmitidas pelo livro.

            É difícil falar de linguagem quando um livro é traduzido de um idioma tão distante do nosso. Mas é possível dizer que a tradução de Jae Hyung Woo é extremamente agradável. Um texto fluido e limpo, bem cadenciado e sem excessos. A divisão em várias vozes (três partes: “A vegetariana”, “A mancha mongólica” e “Árvores em chamas”, com três narradores diferentes) é extremamente bem realizada mostrando os acontecimentos sob diversos pontos de vista.

            Por fim, pode-se dizer (e torcer para) que A vegetariana, merecidamente premiado, seja porta de entrada para uma literatura tão desconhecida entre nós!

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Foto de Rafaela Barbieri

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